quinta-feira, 29 de abril de 2010


MARFIM

Outro dia estava sentado na frente de minha casa. De formas que não se faz mais hoje em dia, hábitos curiosamente apagados por tristes dias contemporâneos.

Há uma certa leveza em se sentar na frente da sua casa. Observar os transeuntes, cada um deles carrega em seu andar, gestos, roupas... uma história. São como histórias ambulantes caminhando bem diante de nós. Por frações de segundos, podemos contemplar aquela história particular, ali, em nossa frente. De graça.

A pé ou em veículos, sejam bicicletas, carros, motos, carroças... são histórias e histórias ali, uma biblioteca viva. Olhássemos profundamente para estas pessoas, poderíamos, quem sabe, comungar de alguns momentos que seus olhos deixam transparecer...

E sentado na frente de minha casa, muitas histórias acontecem. Quando uma história encontra outra história, se torna um épico. Não falo de pessoas caminhando juntas, mas sim, dos acasos. Quando um vizinho joga-lhe água sem querer. Ou uma buzina direcionada para as doces curvas de uma garota. Quem sabe, quando um cão resolve farejar o lixo.

Um mini-épico se forma, a colisão de histórias totalmente diferentes. Em instantes, mundos opostos se confrontam, uma amálgama de roteiros escritos cada um de sua forma peculiar.

Desses encontros, podem surgir vários épicos. Épicos de guerra. Épicos de tragédia. Épicos de amor. Para a pessoa distraída, são apenas acontecimentos aleatóris, mas que engano... histórias realmente motivadoras, dramáticas, inspiradoras, podem acontecer do acaso, na frente de sua casa.

Quantas histórias estão acontecendo nesse momento, geradas por acaso?

Por esbarrões que simplesmente aconteceram pois você achava que teus ombros não eram lá tão espaçosos.

Por estar distraído no carro, e quando se vê... senhor, quase uma tragédia. Ou sim... uma tragédia.

Por palavras que saem em disparada da boca, em um momento aonde o instinto toma as rédeas e... pronto. Sua história não é mais sua, naquele momento. Ela se funde a de uma outra pessoa. É como um pequeno filho, gerado sob a luz de vários sentimentos que ora se opõem... ora se unem...

E, observando tantas histórias acontecendo, me faz pensar se não existe um quê de "superior" nisso tudo. Chame de Deus, Cosmo, Universo... mas, gosto de imaginar que existe uma "mão" que a todo o tempo está nos empurrando tais acasos. Um escritor maior, que adora enredar contos diferentes em uma saga maior. E, sendo criativo como é, o faz com ares inusitados. Criatividade boa. Criatividade amarga. Criatividade, no fim.

Talvez seja apenas idealizar o pequeno, fútil. Mas, lembro de teu sorriso, de tuas mãos mais rápidas que o pensamento, que falaram antes de você falar... e da paz cor de marfim que você emana.

Um conto de acaso enredado em mares de graça e entusiasmo.

Logo me pergunto se é assim. Se, no fundo, não há marfim, não há épico, nem mãos e nem sorriso. Apenas minha vã filosofia em frente a acontecimentos irrelevantes. Um navegante sedento por sentido nas ondas que trafega.

Apenas um sonho.

Não tem como ser.

Mas toda noite, ao deitar, peço para o grande escritor invisível, para que eu continue sonhando acordado. Para que, ao dormir... que não acorde do meu sonho de olhos abertos. Que eu viva eternamente o inesperado acaso. O épico de duas histórias vagantes, por mundos e vias errantes.

Pois já vivi deveras na vida real. E agora, meu real é o onírico. Os braços de Morfeu abraçam as janelas esquadrinhadas da verdade. Tudo se mistura.

Que eu viva eternamente este despertar para o sonho eterno!

E em meu mundo de sonhos...

Dedos entrelaçados sob o marfim do luar...

Nunca se separam...